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maio de 2015
deriva
às cegas
Modos de usar
(1) Vendar-se na sala de oficinas do Espaço do Conhecimento da UFMG,
localizado na Praça da Liberdade.
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(2) Pegar o primeiro ônibus que parar no ponto em frente ao Espaço do Conhecimento.
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(3) Viajar até o ponto final da linha de ônibus.
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(4) Fazer um piquenique na primeira praça que cruzar o caminho.
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(5) Voltar ainda com os olhos vendados.
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(6) Desvendar-se na sala de oficinas do Espaço do Conhecimento da UFMG.
O que sabemos da cidade quando não estamos vendo? Olhamos a cidade e o que vemos é o que nos olha e não desistimos de olhar por um só instante. Pode ser perigoso desviar o olhar. Não permanecer atento ao espetáculo seria deixar a imagem externa para viver o labirinto, as entranhas, o acaso do intestino urbano. Trata-se de um jogo, um jogo performativo e muito simplesinho. O pessoal das artes visuais do leve topou que eu e Maria Luísa, das artes cênicas, os guiassem em meio aos acasos — do ônibus que viria, do bairro que viria, das comidas, encontros, barreiras, degraus, pedrinhas no caminho, tropeços e possíveis quedas que viriam — e assim pegamos o primeiro ônibus que a sorte nos trouxe, em direção ao bairro Suzana, onde paramos e seguimos até encontrar uma praça para que pudéssemos estender nossa canga e nossas comidas. Eles, os artistas visuais que também são nossos amigos, riam à beça, mas também ficaram naturalmente apreensivos, visto que a paisagem interna às vezes se torna mais assustadora do que a externa. Heterotopias da imaginação. Sobrepondo as imagens mentais a partir das sensações que os sentidos, aguçadíssimos pela não-visão, possibilitavam. Criaram uma nova cidade cada um, totalmente estrangeiros. Foi o que nos disseram! Em meio à saturação das imagens e das determinações funcionais da cidade, quem desarma o olhar é rei e vive toda sorte de cidades em um bairro só. Kublai Khan morreria de inveja.
— Thálita Motta
A deriva às cegas surgiu a partir de uma longa conversa entre a Thálita e eu; também movidas pelas experiências de performance que já tínhamos feito juntas. Como deve ser experimentar a cidade se privados da visão?
A questão era a poluição visual que a cidade oferece. E as imagens, também internas, que formamos através disso. Então, o que é enxergar? Porque sem dúvida, é possível ver com a intuição, o tato, o paladar, o olfato e a audição. Os “guiados” foram Elisa, Drim e Sávio. E as “guias” Thálita e eu. Então foi assim: “onde vamos parar? Vira, espera... um pouco mais, um passo à frente. Cuidado, um degrau. Me dá a mão, confia, chegamos!” Então foi tatear a construção de uma maquete de sensações. Um mosaico incerto desse piquenique urbano... cheio de altos e baixos. Vejamos... sejamos leves nesse ver.
— Maria Luísa
Anotações durante a vivência do não-ver
— 3 vendados subindo no ônibus com a ajuda de Thálita e Maria Luísa
— 2 cegas me acompanham, sentadas ao meu lado | realidade e simulação | é legítima essa experiência simulada?
— Rua Paraíba
— Falta equilíbrio
— Falta noção de espaço
— Maria Helena; Isabel
(essas são conhecidas!)
— Vento de cima traz os ares de fora
— Luzes difusas
— A porta do ônibus se abre em seguida ao ruído de uma moeda contra outro metal
— Freada de ônibus
(tem também um barulho típico)
— O ônibus está vazio...
— Vai com Deus!
— Ônibus 5031... vai na Timbiras
— Vazio mesmo!
— Buzina de moto
— Tudo sempre balança no ônibus...
muitas paradas... será o trânsito do
centro?
— Curva para a direita
— Alguém se sentou ao lado de Sávio... uma mulher de perfume agradável...puxou conversa. Possivelmente está na meia idade. O assunto: deficiência e experiência
— Som de uma ambulância
— Será que a chuva passou?
— Cheiros de fora: uma lanchonete...
— Barulho de plástico
— Cheiro de mato molhado
— Pingos
— Barulho de funilaria
— Descendo, descendo, descendo
— Subindo, subindo, subindo
— Cheiro de eucalipto e chuva
— Na volta: desenhar o que não foi visto. Um banco; uma árvore; uma moringa; a planta baixa da praça do piquenique com a árvore no meio; a mão que vê; ausência de celular; descrever a roupa daquela pessoa, a cor de seu sapato e de seu cabelo; desenhar o trajeto mantendo a caneta no papel. Chegamos.
— Viver a desorientação. Um receio habitando o corpo. O corpo entregue e o esforço por controlar o invisível. Imersão solitária na ida e na volta, acompanhada pela necessidade premente de registrar tudo o que pudesse ser significativo para além do visível. Sentir todos os odores da rua, das pessoas, do ônibus. Sentir-se a estátua sensível de Condillac, citada por Borges na História dos Seres Imaginários. Ouvir cada ruído, cada diálogo, todos os sinais do caminho.
É um alívio não estar só! Única garantia para a experiência do não-ver não passar de uma ficção!
— Elisa Campos
Participantes:
Drin Cortes. Elisa Campos. Maria Luísa Fonseca. Sávio Reale. Thálita Motta.